Esquecimento de Nomes Próprios: Tessituras do Inconsciente
- Jéssica Domingues
- 16 de jul.
- 4 min de leitura
Sobre a série “Psicopatologia da vida cotidiana”
Psicopatologia da vida cotidiana: expressões do inconsciente em nossa rotina
Em 1901, Freud publicou o artigo que dá nome a esta série. Um texto extenso, por vezes mutilado nas traduções — algumas edições chegam a omitir dois terços do conteúdo original, como apontam notas da edição Standard.
O artigo foi escrito logo após a publicação de A Interpretação dos Sonhos (1900) e pode ser lido como seu desdobramento. Se no livro dos sonhos Freud introduz os mecanismos de condensação, deslocamento e figurabilidade, neste artigo ele mostra como essas operações também aparecem fora do contexto onírico — nos esquecimentos, lapsos e pequenos erros da vida desperta.
Fora do setting analítico, essas manifestações costumam ser tratadas como acontecimentos triviais. Mas, na análise, tornam-se matéria de escuta, abrindo caminhos para as mensagens cifradas que o sujeito comunica — mesmo sem saber.
Como o texto é longo e cada capítulo trata de uma formação diferente — desde o esquecimento de palavras estrangeiras até os atos falhos combinados, o determinismo inconsciente e a crítica à crença no acaso — esta série propõe uma leitura semanal comentada, em que cada post será dedicado a um desses aspectos.
Entre o esquecimento e o erro, entre o riso e o estranhamento, o inconsciente se insinua — e convida à reflexão.
Capítulo 1 – O esquecimento de nomes próprios

Nem todo esquecimento é sem sentido
Começo pelo fim do capítulo escrito por Freud:
“Junto aos casos simples de esquecimento de nomes próprios, existe também um tipo de esquecimento motivado pelo recalque.”
Nem todo esquecimento de nome é um ato falho. Às vezes, esquecer é só esquecer. Mas há casos em que esse deslize revela muito mais: uma via de acesso ao inconsciente, que se expressa justamente pela via do esquecimento.
O que se esconde nos nomes esquecidos?
Quando o inconsciente opera, não há esquecimento neutro. Há deslocamento, substituição, proteção psíquica.
Freud descreve esse processo como uma espécie de rede de significados emaranhados — como um rolo de lã confuso, onde puxar um fio traz outros juntos. Esses fios que vêm são os nomes substitutos: palavras que aparecem no lugar do nome esquecido e que carregam, de forma cifrada, o conteúdo recalcado.
Associação livre: puxar o fio do inconsciente
No setting analítico, mesmo quando o sujeito não traz nomes substitutos espontaneamente, a associação livre pode convocá-los. E é nessa trama que se escondem — e se revelam — os sentidos encobertos do esquecimento.
O exemplo de Freud: esquecimento, desejo e censura
Neste capítulo, Freud compartilha um exemplo pessoal. Em uma viagem, ao conversar com um desconhecido, tenta se lembrar do nome de um artista, mas em seu lugar surgem dois nomes equivocados.
Ao investigar o motivo da falha, compreende que o conteúdo que se ocultava dizia respeito à sexualidade e à morte — temas comumente recalcados, tanto no indivíduo quanto na cultura. Freud voltaria a esse ponto em outras obras, como no texto A moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna (1908) e em O mal-estar na cultura (1929), em que discutem os efeitos psíquicos das renúncias exigidas pela vida em sociedade.
Havia, segundo ele, uma intenção consciente de não tocar no assunto, que se articulava a uma operação inconsciente de esquecimento, o preservando de um desconforto potencial.
Aqui, talvez um gancho futuro: o texto “A moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna” pode ser retomado como aprofundamento dessas tensões culturais.
A pergunta que ecoa, então, não é apenas “quem era o artista?”, mas:
Do que esquecemos quando esquecemos?
Talvez o nome seja só a superfície. Talvez, ao esquecê-lo, o que o sujeito realmente recuse lembrar é o que está enredado nesse nome — uma imagem, um afeto, uma lembrança, um desejo inconveniente.
E esse, como nos mostra Freud, pode ser o começo de uma escuta.
Próximo capítulo: quando as palavras estrangeiras somem
No próximo texto da série, Freud se debruça sobre outro tipo de esquecimento: o das palavras estrangeiras. Para ser avisado dos novos textos, você pode se inscrever no formulário de Newsletter logo abaixo ou clicando aqui.
Referência:
Freud, S (1901). Psicopatologia da Vida Cotidiana, capitulo 1.
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Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes e adultos em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
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