Psicanálise e autoconhecimento: impasses do ideal e do tempo

Psicanálise e autoconhecimento: qual é a relação?

Vivemos em uma época que valoriza respostas rápidas, soluções diretas e performances bem acabadas. Nessa lógica, o autoconhecimento é muitas vezes apresentado como algo a ser conquistado em poucos passos — quase como um projeto de eficiência pessoal.

Mas o que a psicanálise tem a dizer sobre o autoconhecimento?

A resposta, como de costume, não é simples. A escuta psicanalítica nos convida a suspender a urgência por resultados e a considerar que há em nós zonas opacas, desejos contraditórios, lapsos e sintomas que não se deixam resolver tão facilmente.

Em vez de buscar uma versão idealizada de si, o processo analítico se volta para a implicação do sujeito com seu próprio dizer.

O "eu ideal" — conceito da psicanálise formulado por Freud — refere-se a uma instância interna que atua como exigência de perfeição, alimentada pelas expectativas externas. O risco, nesse cenário, é que a busca pelo autoconhecimento se transforme numa cobrança por performance, afastando o sujeito de si mesmo.

Adoecimento e urgência: os efeitos do ideal de autoconhecimento

Essa pressa por se “conhecer” e se “melhorar” está longe de ser neutra. Ela compõe um cenário cultural adoecedor, em que o sofrimento psíquico é visto como falha individual a ser rapidamente corrigida.

Como escrevi em outro momento, essa urgência por explicar ou resolver o sofrimento pode silenciar o que nele pede escuta e elaboração. Leia: O significado do sofrimento: entre a explicação e a elaboração.

Muitos dos sintomas que escutamos na clínica hoje — ansiedade constante, sensação de inadequação, autoexigência paralisante — têm relação com essa lógica performática do “ser melhor”, o tempo todo.

Já comentei como essa aceleração subjetiva afeta a experiência psíquica, sobretudo quando não há espaço para sustentar o mal-estar sem apressar soluções. Leia: Ansiedade e aceleração: sobre o ruído, o tempo e a ausência

As redes sociais intensificam essa dinâmica. Ao expor versões editadas da vida e dos afetos, alimentam o campo da idealidade e produzem uma urgência por corresponder a padrões inatingíveis, deslocando o sujeito de sua própria experiência. Falta espaço para o inacabado, o contraditório, o que falha — ou seja, para o humano.

É nesse ponto que a psicanálise propõe um desvio radical.

Psicanálise e autoconhecimento: tempo, processo e escuta

Se há autoconhecimento na psicanálise, ele não vem pronto nem vem rápido.

Ele acontece no tempo do sujeito — um tempo que não se mede em metas ou em produtividade, mas em escuta e elaboração. Leia também: Para quem é a psicanálise?

Esse processo pode implicar perdas, revisões, confrontos com o que não se gostaria de saber. Mas é justamente por isso que pode abrir novos caminhos. Conhecer-se, na psicanálise, é mais do que saber sobre si — é sustentar o enigma que se é. É poder construir um modo mais singular e habitável de existir, menos guiado pela comparação e mais enraizado no desejo próprio.Leia: Repetição e Inconsciente: é possível mudar o roteiro da própria vida?

No limite, talvez conhecer-se seja isso: sustentar o enigma, abrir-se ao que escapa, reconhecer que há um “não-ser” que nos habita — e ainda assim seguir.

Como escreveu Antero de Quental:

“Não-ser, que és o Ser único absoluto.” — Antero de Quental, Elogio da Morte VI

Para continuar lendo:

• O significado do sofrimento: entre a explicação e a elaboração

• Ansiedade e aceleração: sobre o ruído, o tempo e a ausência

• A dor que não tem nome: por que escutar o que sentimos pode transformar?

• Para quem é a psicanálise?

• Repetição e Inconsciente: é possível mudar o roteiro da própria vida?

Em um tempo que exige pressa e performance, multiplicamos máscaras na tentativa de corresponder a um ideal. A psicanálise propõe outra via: escutar o que escapa.

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Sobre a Autora:

Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes e adultos em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.

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