O Sonho e a Vida de Vigília: ecos e continuidades
- Jéssica Domingues
- 15 de out.
- 5 min de leitura
Sobre a série “A Interpretação dos Sonhos”
A Interpretação dos Sonhos: o inconsciente em imagens e deslocamentos
Publicada em 1900, A Interpretação dos Sonhos é considerada a pedra fundamental da psicanálise. Nela, Freud descreve como o inconsciente se expressa nas imagens oníricas por meio de condensações, deslocamentos e processos de figurabilidade — mecanismos que traduzem o pensamento inconsciente em cenas, símbolos e narrativas.
Com esta série, damos continuidade ao percurso iniciado em “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, texto publicado em 1901 e que pode ser lido como um desdobramento de A Interpretação dos Sonhos. Se ali Freud mostrou como o inconsciente se revela nos lapsos, esquecimentos e atos falhos, aqui ele nos conduz à origem do trabalho onírico, onde o desejo se disfarça em imagem e o sentido se oculta no sonho.
Ao propor que os sonhos são a via régia para o inconsciente, Freud nos convida a atravessar essa fronteira entre o visível e o invisível, entre o que se sonha e o que se cala. Nesta série, acompanharemos essa travessia, explorando os conceitos fundamentais da interpretação dos sonhos e o modo como, ainda hoje, os sonhos seguem sendo uma via de acesso ao inconsciente e à elaboração psíquica.
Capítulo 1 - A: A relação do sonho com a vida de vigília

Freud inicia A Interpretação dos Sonhos percorrendo os caminhos já trilhados por aqueles que tentaram compreender o sonhar. Antes de apresentar sua própria leitura, ele se detém sobre o que chama de “a literatura científica sobre os problemas do sonho”. E é curioso perceber que, antes de Freud, o sonho era visto ora como curiosidade fisiológica, ora como perturbação da alma — um fenômeno à margem do pensamento.
No entanto, para Freud, o sonho não é uma anomalia da consciência. Ele é, de certo modo, sua continuação — uma narrativa que emerge quando a censura diurna se afrouxa. Assim, o sonho e a vida de vigília não se opõem; comunicam-se, como se compartilhassem a mesma matéria psíquica, apenas em estados diferentes de liberdade.
A herança de um olhar científico
Nos estudos que Freud revisita, o sonho é reduzido ao corpo: uma atividade do cérebro cansado, um eco fisiológico do dia. Outras teorias o descrevem como um resíduo da vigília — um resto de estímulos não digeridos pela consciência, ou ainda como algo de teor místico e espiritual. Essas visões, embora observem corretamente a relação entre o sonho e a experiência diurna, deixam escapar o essencial: o sonho não repete o dia, ele o transforma.
Freud percebe nessa relação algo mais profundo. Ele observa que o material do sonho vem da vida de vigília, mas é reorganizado por outra lógica — uma lógica que pertence ao inconsciente. O sonho, portanto, transforma o vivido. Ele o reescreve, desloca, condensa, reinventa.
Entre o vivido e o sonhado
É nesse ponto que a teoria freudiana começa a ganhar corpo: o sonho é uma ponte entre o inconsciente e o vivido. Ele recolhe fragmentos da realidade, combina-os com lembranças esquecidas e fabrica cenas onde o impossível se torna possível.
Há, portanto, uma continuidade entre o sonhar e o viver, mas uma continuidade distorcida, invertida, às vezes absurda — e justamente por isso reveladora. No sonho, o sujeito fala sem saber que fala; age sem saber que age; deseja sem saber o que deseja.
Entre o dia e a noite
No texto freudiano, a relação entre o sonho e a vigília não é de oposição, mas de tradução.O que o dia não pôde elaborar retorna à noite como imagem, enredo, sensação. O sonho usa fragmentos da realidade e os costura com restos de lembranças antigas, criando algo novo — nem memória, nem fantasia pura.
É nessa passagem entre o claro e o obscuro que o inconsciente se manifesta. Não como ruptura, mas como modo alternativo de expressão. O sonho não anula a razão; apenas fala em outra língua.
Quando o sonho nos desconcerta
Nem sempre o sonho traz consolo. Às vezes ele perturba, expõe algo que gostaríamos de esquecer, ou nos coloca diante de um cenário que parece não fazer sentido. Mesmo assim, algo nele comunica. Ele se dirige a nós, ainda que em murmúrio.
Freud mostrará que compreender o sonho exige uma escuta especial — uma disposição para acolher o que se apresenta sem julgar. Nessa escuta, o sonho revela não o que queremos saber, mas o que insiste em ser dito.
Entre o sono e o despertar
A leitura deste início de A Interpretação dos Sonhos convida a pensar o sonhar não como fuga, mas como continuidade de um trabalho psíquico. A vida de vigília fornece o material, mas é o inconsciente quem o transforma.
Sonhar é, talvez, a forma mais antiga de pensar — uma forma que não precisa de palavras, apenas de imagens. E ao despertar, algo desse pensamento noturno permanece, ecoando silenciosamente na vida que continua.
Uma escuta do que insiste
E o que essa leitura nos sugere, clinicamente? Talvez que o sonho não seja apenas um fenômeno noturno, mas uma linguagem do desejo em estado puro. Sonhamos também quando acordados — quando fantasiamos, quando nos perdemos em pensamentos, quando lembramos de algo que nunca aconteceu exatamente assim.
O sonho, então, é uma tentativa: uma tentativa de traduzir o indizível, de dar corpo ao que a consciência não pôde conter. Ele não fala em palavras, mas em imagens, gestos, atmosferas. E se o escutamos com atenção, pode revelar a trama invisível que costura nossos dias.
Perguntas frequentes sobre o sonho e a vida de vigília (FAQ)
1. O que Freud quer dizer com “a relação do sonho com a vida de vigília”?
Freud observa que o sonho se constrói com elementos da vida desperta. Pessoas, cenas e impressões do dia anterior aparecem de modo transformado no conteúdo do sonho. Essa relação mostra que o sonho não é alheio à experiência diurna, mas uma forma diferente de elaborá-la.
2. O sonho repete o que vivemos?
Não exatamente. Freud mostra que o sonho recria o vivido, reorganizando fragmentos da realidade sob outra lógica — a do inconsciente. Assim, o sonho não é cópia do dia, mas tradução simbólica dele.
3. Por que alguns sonhos parecem sem sentido?
Porque o inconsciente não fala com as mesmas regras da linguagem consciente. Ele usa imagens, deslocamentos e condensações para expressar o que não cabe na fala direta. O aparente absurdo é parte da forma como o sonho comunica.
4. O sonho tem sempre um significado psíquico?
Para Freud, sim. Mesmo quando parece trivial, o sonho revela processos psíquicos. Ele nunca é inteiramente sem sentido; o que falta é a chave de leitura.
5. Qual é o papel da vigília na formação do sonho?
A vida de vigília fornece o material — as lembranças recentes, os afetos, os pensamentos do dia. O sonho os transforma, articulando-os a conteúdos mais antigos da vida psíquica.
Referência:
Freud, S (1900). A interpretação dos sonhos, 1-a.
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Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes e adultos em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
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