Quando o fim do ano desperta o luto
- Jéssica Domingues
- 14 de nov
- 5 min de leitura
Atualizado: 17 de nov
Há épocas em que o tempo nos pede balanços. No fim do ano, um inventário afetivo muitas vezes se impõe: o que ficou, o que findou, o que não se realizou. É comum que o luto reapareça— não apenas pela ausência de alguém, mas por lugares, vínculos, modos de viver e versões de si que já não existem.
O luto nem sempre tem nome. Às vezes é o fim de um trabalho que sustentava a rotina; outras, a mudança de cidade, o término de uma relação, o cansaço diante de um ciclo que se encerra. Há lutos silenciosos, quase imperceptíveis, que se misturam às demandas da vida cotidiana — silêncios que, em dezembro, ganham contorno.

O tempo e suas pressões
O fim do ano aciona pressões internas e externas — mensagens, prazos, balanços, convites. Entre metas e despedidas, há uma exigência de vitalidade que nem sempre se sustenta. As luzes e as festas contrastam com aquilo que, por dentro, ainda está sendo elaborado.
O trabalho de luto é um processo que se faz em camadas. Ele pede espaço para que algo possa ser simbolizado — e não existe um tempo único para isso. Há lutos que se elaboram silenciosamente, e outros que se transformam em prisão, impedindo o investimento em novas experiências. É preciso cuidado: quando a perda se torna o único eixo da vida, o sofrimento deixa de ser elaboração e passa a ser repetição.
O tempo do luto é singular, mas ele deve poder seguir adiante, abrindo espaço para o novo. Durante a análise pessoal, esse trabalho pode ganhar linguagem e direção, não para apagar a perda, mas para dar-lhe forma.
O fim do ano, então, não é o problema em si, mas o palco que convoca personagens, às vezes adormecidos, para a cena. O convívio, as músicas, as recordações — tudo isso pode tocar o que permanecia em silêncio.
Lutos com e sem nome
Às vezes é pequeno: abrir a gaveta do trabalho antigo e não reconhecer quem você era ali. Em outras, é mudar de cidade, encerrar uma relação — mesmo as que quase não começaram —, ou perceber que o tempo passou e você já se vê de outra forma.
Essas perdas sem ritual também pedem elaboração. Nem sempre se trata de tristeza, mas de descompasso — como se o mundo estivesse em ritmo de celebração e algo dentro pedisse pausa.
O trabalho de luto é um dos movimentos mais importantes da vida psíquica: é o que permite reinvestir no mundo, reconstruir laços e criar novas formas de amar e de existir. Elaborar uma perda não significa esquecê-la, mas transformá-la em algo que possa continuar conosco sem nos paralisar.
Em alguns momentos, a ausência se manifesta como um sentimento de vazio; em outros, vem acompanhada de uma culpa silenciosa que tenta dar forma à dor. Reconhecer essas nuances é parte do próprio processo de elaboração.
Uma respiração
“Este grandioso espetáculo é eterno. Sempre há o nascer do sol em alguma parte; o orvalho jamais se seca todo de uma vez; sempre há uma chuvarada caindo; o vapor sempre está subindo. O eterno nascer do sol, o eterno pôr do sol, o eterno raiar do dia e o eterno entardecer, no mar e nos continentes e nas ilhas, cada um por sua vez, à medida que gira a Terra.” John Muir
Há algo de consolo nessa percepção: enquanto o tempo humano insiste em fechos e balanços, a natureza segue em ciclos. Talvez o luto pertença a esse mesmo movimento — um processo contínuo de transformação, que não termina, apenas muda de forma.
Entre pausas e pressões
O luto pede tempo — e também presença. Nem sempre é preciso entender; às vezes basta suportar o intervalo entre o que foi e o que ainda não é.
Que parte de você está mudando neste fim de ano? Há algo que se despede em silêncio? Há um gesto pequeno que caberia hoje?
Entre as pressões e as pausas, talvez dezembro seja menos conclusão e mais dobra: um tempo para respirar e reconhecer que continuar também é uma forma de lembrar.
Se este texto tocou algo em você, talvez seja hora de oferecer espaço ao que pede lugar.
FAQ – Luto e fim do ano
1. Por que o luto costuma reaparecer no fim do ano?
O fim do ano tende a concentrar tempos: o vivido e o que se perdeu. As datas e os rituais fazem emergir memórias, e o contraste entre o ambiente festivo e o recolhimento interno pode acentuar o que ainda está em elaboração.
2. O luto precisa ter prazo para acabar?
Cada luto tem seu ritmo. Há os que se elaboram silenciosamente e os que se prolongam sem conseguir encontrar forma. Quando o sofrimento ocupa todo o espaço e a vida parece suspensa, pode ser hora de buscar um lugar de escuta para isso.
3. É possível viver o fim do ano em meio ao luto?
Talvez não se trate de “viver bem” o fim do ano, mas de reconhecer o que ele convoca. Às vezes é um tempo de pausa, de recolhimento; outras, de reencontro com o que segue vivo, mesmo após a perda.
4. O que significa elaborar uma perda?
Elaborar não é esquecer. É poder transformar a presença da ausência em algo que se integre à vida — uma lembrança que deixa de ferir para poder acompanhar.
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Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes e adultos em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
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