Atos casuais e atos sintomáticos: o que os gestos revelam sobre o inconsciente
- Jéssica Domingues
- 10 de set.
- 5 min de leitura
Sobre a série “Psicopatologia da vida cotidiana”
Psicopatologia da vida cotidiana: expressões do inconsciente em nossa rotina
Em 1901, Freud publicou o artigo que dá nome a esta série. Um texto extenso, por vezes mutilado nas traduções — algumas edições chegam a omitir dois terços do conteúdo original, como apontam notas da edição Standard.
O artigo foi escrito logo após a publicação de A Interpretação dos Sonhos (1900) e pode ser lido como seu desdobramento. Se no livro dos sonhos Freud introduz os mecanismos de condensação, deslocamento e figurabilidade, neste artigo ele mostra como essas operações também aparecem fora do contexto onírico — nos esquecimentos, lapsos e pequenos erros da vida desperta.
Fora do setting analítico, essas manifestações costumam ser tratadas como acontecimentos triviais. Mas, na análise, tornam-se matéria de escuta, abrindo caminhos para as mensagens cifradas que o sujeito comunica — mesmo sem saber.
Como o texto é longo e cada capítulo trata de uma formação diferente — desde o esquecimento de palavras estrangeiras até os atos falhos combinados, o determinismo inconsciente e a crítica à crença no acaso — esta série propõe uma leitura semanal comentada, em que cada post será dedicado a um desses aspectos.
Entre o esquecimento e o erro, entre o riso e o estranhamento, o inconsciente se insinua — e convida à reflexão.
Capítulo 9: Atos casuais e atos sintomáticos

Freud nos convida a olhar para aqueles gestos que parecem banais — esquecer um objeto em algum lugar, girar distraidamente um anel, assobiar uma melodia qualquer. Chamamos de atos casuais e atos sintomáticos, porque, embora envoltos em aparência de acaso, carregam também a marca de uma intenção inconsciente.
Freud define de forma precisa:
“Eles expressam algo de que o próprio agente não suspeita neles e que, em regra geral, não pretende comunicar, e sim guardar para si.”
O que parece acaso...
Um copo derrubado na mesa, o telefone que escorrega das mãos, a xícara que sempre se quebra “sem querer”.À primeira vista, diríamos: “coisas do dia a dia, distração, azar.”
Mas Freud nos lembra que, muitas vezes, esses “acasos” não são tão inocentes. Eles podem surgir como a expressão de algo que, recalcado, encontra seu modo de aparecer no gesto.
...pode ser sintoma
Nesses atos, vemos a continuidade dos lapsos de fala, escrita ou leitura: é o inconsciente que, sem pedir licença, encontra passagem.
Assim, atos sintomáticos não são sintomas no sentido clínico maior (como os que marcam um quadro neurótico), mas pequenas janelas pelas quais se deixa entrever uma verdade inconfessa.
A caneta que sempre some quando se precisa assinar algo indesejado.
O bilhete que se amassa e desaparece no bolso, impedindo um recado de chegar.
O botão da roupa que insiste em se soltar antes de um encontro importante.
O sintoma aqui é discreto, mas eloquente.
Entre os muitos exemplos, Freud dá especial atenção aos anéis. Perder, tirar ou colocar o anel, esquecê-lo no bolso — todos esses movimentos podem ser lidos como mensagens a respeito da posição que determinado relacionamento ocupa para quem o usa. O anel, nesse sentido, torna-se um signo da ligação afetiva e sua manipulação, um comentário inconsciente sobre esse vínculo.
O impensado do gesto e o impensável
Uma resistência se aloja no gesto, transformando o “casual” em uma assinatura subjetiva. Nesse ponto, Freud insiste: é preciso escutar também os atos mais ínfimos, pois o inconsciente não distingue grande do pequeno — ele se infiltra onde pode.
Um exemplo muito interessante que Freud traz é quando menciona um episódio clínico: uma jovem, ao abrir bruscamente a porta do consultório enquanto a paciente anterior ainda saía, justificou-se falando em sua “irreflexão”. Logo ficou claro que ali se atualizava uma cena de sua história: a curiosidade que, em tempos passados, a fizera entrar no quarto dos pais.
O ato, que parecia apenas descuido, foi uma forma de repetição — um enredo inconsciente que retorna e que, na análise, ganha lugar de elaboração. Esse exemplo aproxima os atos casuais do texto “Lembrar, repetir e elaborar” (1914), onde Freud mostra como o passado retorna pela via da atuação transferencial.
Se você ficou curioso com esse tema, aqui no blog escrevi um outro texto que explora ele em mais detalhes: Repetição e Inconsciente: é possível mudar o roteiro da própria vida?.
A poética do acaso
Podemos pensar esses atos como pequenas peças de teatro improvisadas pelo psiquismo. O gesto é o palco, o sintoma, a fala breve.
E nós, que o realizamos, muitas vezes nos surpreendemos: “Mas eu não queria fazer isso.”
Talvez não quisesse, mas outra parte sua quis — e encontrou no “acaso” um caminho.
Conclusão: o que dizem os seus gestos triviais?
Freud nos mostra que os atos casuais e sintomáticos não são apenas distrações sem importância. Eles são sinais discretos do inconsciente, fissuras onde desejos, resistências e conflitos emergem sob a forma de tropeço, deslize ou descuido.
Escutar esses atos é escutar a si mesmo em profundidade. O que parecia irrelevante pode ser justamente a pista mais reveladora.
Próximo capítulo: erros
No próximo texto da série, Freud toca no assunto erros e de como eles se entrelaçam com o inconsciente. Para ser avisado dos novos capítulos, você pode se inscrever no formulário de newsletter logo abaixo ou clicando aqui.
Referência:
Freud, S (1901). Psicopatologia da Vida Cotidiana, capitulo 7.
Freud, S (1914). Lembrar, repetir e elaborar.
Continue lendo:
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Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes e adultos em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
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