Equívocos na ação: quando o inconsciente se impõem gesto
- Jéssica Domingues
- 3 de set.
- 4 min de leitura
Sobre a série “Psicopatologia da vida cotidiana”
Psicopatologia da vida cotidiana: expressões do inconsciente em nossa rotina
Em 1901, Freud publicou o artigo que dá nome a esta série. Um texto extenso, por vezes mutilado nas traduções — algumas edições chegam a omitir dois terços do conteúdo original, como apontam notas da edição Standard.
O artigo foi escrito logo após a publicação de A Interpretação dos Sonhos (1900) e pode ser lido como seu desdobramento. Se no livro dos sonhos Freud introduz os mecanismos de condensação, deslocamento e figurabilidade, neste artigo ele mostra como essas operações também aparecem fora do contexto onírico — nos esquecimentos, lapsos e pequenos erros da vida desperta.
Fora do setting analítico, essas manifestações costumam ser tratadas como acontecimentos triviais. Mas, na análise, tornam-se matéria de escuta, abrindo caminhos para as mensagens cifradas que o sujeito comunica — mesmo sem saber.
Como o texto é longo e cada capítulo trata de uma formação diferente — desde o esquecimento de palavras estrangeiras até os atos falhos combinados, o determinismo inconsciente e a crítica à crença no acaso — esta série propõe uma leitura semanal comentada, em que cada post será dedicado a um desses aspectos.
Entre o esquecimento e o erro, entre o riso e o estranhamento, o inconsciente se insinua — e convida à reflexão.
Capítulo 8: Equívocos na ação

A chave que não abre
Quem nunca trocou de chave e tentou abrir uma porta que não cedia? Freud começa este capítulo lembrando como esses objetos banais são campeões de equívocos. As chaves, que deveriam abrir caminhos, às vezes se tornam símbolos de entraves. No cotidiano, confundir, esquecer ou insistir na chave errada pode ser apenas distração — mas pode também revelar uma resistência: a porta que não se quer abrir, o compromisso do qual se deseja escapar, a visita que se adia silenciosamente.
Pequenos rituais, grandes equívocos
Freud associa muitos desses atos a gestos supersticiosos. Um exemplo curioso: em sua cultura, era comum quebrar um objeto de vidro ou porcelana como sinal de sorte durante um casamento. Certa vez, em sua própria casa, louças começaram a se partir de forma “acidental” antes da celebração da filha mais velha.
Um acidente? Ou uma tentativa inconsciente, coletiva até, de apressar o destino e chamar a sorte para dentro de casa? Esses atos mostram como os equívocos se ligam não apenas ao indivíduo, mas também ao campo simbólico e cultural em que ele vive.
Quando o corpo fala por si
Há equívocos que pesam mais. Freud descreve situações em que o próprio corpo se torna palco da resistência. Pequenos ferimentos ou falhas revelam intenções reprimidas.
Quem nunca mordeu a língua justamente no instante em que ia dizer algo que “não deveria”? Ou tropeçou no momento de se aproximar de alguém? Nesses casos, o gesto vira uma forma de autopunição: uma resposta do psiquismo ao conflito entre desejo e interdição.
A culpa e autorecriminação podem aparecer nessas circunstâncias, lembro aqui de dois outros textos de Freud: Arruinados pelo Êxito (1916) e Criminosos pela Culpa (1916). Nesses dois artigos e que Freud trata da questão do caráter, Freud mostra como esses afetos (culpa e autorecriminação) podem interagir de forma sintomática levando o sujeito a atos de menor ou maior gravidade de forma inconsciente.
A poética do tropeço
Podemos pensar o equívoco como uma coreografia interrompida: o corpo parece saber para onde ir, mas uma outra força corta o movimento. É como se, na dança cotidiana, o inconsciente puxasse um passo imprevisto.
Esses erros carregam a mesma força das metáforas oníricas — condensam intenções, resistências e desejos em um ato mínimo, às vezes quase imperceptível.
Quando o gesto fala
Esses pequenos tropeços não devem ser lidos como falhas mecânicas. São mensagens cifradas. O gesto fala onde a palavra silencia.
Não é preciso recorrer a um vocabulário técnico para compreender. Basta recordar aquele momento em que a ação pareceu escapar das próprias mãos — e se perguntar: o que, em mim, quis que fosse assim?
Conclusão: o que o seu equívoco quis dizer?
Freud nos mostra que os equívocos da ação não são simples acidentes. Eles carregam a marca de uma intenção desviada, de uma resistência que se infiltrou no gesto.
Observar esses movimentos é também se observar: não para eliminar os tropeços, mas para aprender a escutar o que eles denunciam.
Talvez o seu último equívoco não tenha sido apenas uma distração. Talvez tenha sido um recado — discreto, mas insistente — do seu inconsciente.
Próximo capítulo: atos casuais e sintomáticos
No próximo texto da série, Freud toca no assunto atos casuais, aqueles que não há uma intenção consciente envolvida. Para ser avisado dos novos capítulos, você pode se inscrever no formulário de newsletter logo abaixo ou clicando aqui.
Referência:
Freud, S (1901). Psicopatologia da Vida Cotidiana, capitulo 7.
Freud, S (1916). Arruinados pelo Êxito.
Freud, S (1916). Criminosos pela Culpa.
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Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes e adultos em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
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