Esquecimentos de impressões e intenções: quando o inconsciente “pausa o jogo”
- Jéssica Domingues
- 27 de ago.
- 5 min de leitura
Sobre a série “Psicopatologia da vida cotidiana”
Psicopatologia da vida cotidiana: expressões do inconsciente em nossa rotina
Em 1901, Freud publicou o artigo que dá nome a esta série. Um texto extenso, por vezes mutilado nas traduções — algumas edições chegam a omitir dois terços do conteúdo original, como apontam notas da edição Standard.
O artigo foi escrito logo após a publicação de A Interpretação dos Sonhos (1900) e pode ser lido como seu desdobramento. Se no livro dos sonhos Freud introduz os mecanismos de condensação, deslocamento e figurabilidade, neste artigo ele mostra como essas operações também aparecem fora do contexto onírico — nos esquecimentos, lapsos e pequenos erros da vida desperta.
Fora do setting analítico, essas manifestações costumam ser tratadas como acontecimentos triviais. Mas, na análise, tornam-se matéria de escuta, abrindo caminhos para as mensagens cifradas que o sujeito comunica — mesmo sem saber.
Como o texto é longo e cada capítulo trata de uma formação diferente — desde o esquecimento de palavras estrangeiras até os atos falhos combinados, o determinismo inconsciente e a crítica à crença no acaso — esta série propõe uma leitura semanal comentada, em que cada post será dedicado a um desses aspectos.
Entre o esquecimento e o erro, entre o riso e o estranhamento, o inconsciente se insinua — e convida à reflexão.
Capítulo 7: Esquecimentos de impressões e Esquecimentos de intenções

Você já se viu esquecendo onde guardou a chave justamente no dia de uma prova que não queria enfrentar? Ou de pagar uma conta enquanto sentia que a cobrança era injusta, mesmo estando preocupado com dinheiro? Ou simplesmente ir fazer algo e esquecer no meio do caminho, se sentindo no The Sims. Esses esquecimentos de impressões e intenções, aparentemente banais, podem revelar muito mais do que distração: são manifestações do inconsciente.
O esquecimento como resistência
Freud nos lembra que o esquecimento de impressões ou de intenções não é mero acidente. O sujeito, ainda que consciente de sua intenção, pode estar vulnerável à sua resistência. Nesse sentido, o esquecimento funciona como um desvio: o que estava destinado à lembrança ou à ação é barrado, interrompido, editado.
É como se o psiquismo dissesse silenciosamente:
“Sim, eu tinha a intenção... mas uma parte minha discorda disso.”
Não se trata de uma escolha deliberada, mas de um conflito interno em que o recalque se manifesta na forma de esquecimento.
Uma edição invisível
Freud descreve o inconsciente como uma força que atua não apenas no que lembramos, mas também no que escolhemos esquecer.
O esquecimento pode ser pensado como uma edição invisível:
frases cortadas,
trechos que se perdem,
intenções riscadas da agenda sem que o sujeito perceba a mão que segura o lápis.
Ouvir esses esquecimentos é abrir espaço para aquilo que se tentou calar.
Entre resistência e recusa
Em alguns casos, Freud aproxima esses esquecimentos da recusa (Verleugnung). É como se determinados conteúdos fossem tratados como algo que “seria melhor não ter acontecido”. Pacientes ou familiares, por exemplo, esquecem de ter dado certas informações a um médico, não por acaso, mas porque reconhecer esses conteúdos traria um desconforto difícil de suportar.
Ilusões de memória
Esses esquecimentos também podem criar verdadeiras ilusões de memória. Quem nunca acreditou ter enviado uma mensagem que ficou apenas no rascunho? Ou jurou que contou algo a alguém quando, na realidade, apenas pensou em contar?
Nesses casos, o psiquismo preenche as lacunas com falsas lembranças, tentando costurar a narrativa e dar coerência ao que escapou. Freud mostra que, em quadros patológicos, essas ilusões podem até ter papel na formação de delírios.
Um exemplo freudiano: o mata-borrão
Em um de seus exemplos, Freud conta que queria comprar um mata-borrão (Löschpapier), mas esqueceu por vários dias. Ao investigar a razão da omissão, percebeu que costumava chamá-lo de Fliesspapier, palavra que trazia a lembrança de seu amigo Fliess, que naquele momento lhe causava pensamentos aflitivos.
A intenção banal de comprar um objeto foi atravessada pela associação inconsciente. O esquecimento, aqui, não dizia respeito ao objeto em si, mas ao nome associado a um afeto incômodo.
Esquecimentos que falam
Assim como nos lapsos de nomes, os esquecimentos de intenções não se explicam apenas pelo objeto esquecido. Eles se associam a outras ideias, atravessados por resistências e deslocamentos.
Na pressa do cotidiano, é fácil culpar a distração. Mas, muitas vezes, o que se esconde nesses esquecimentos é justamente aquilo que o sujeito não queria lembrar — ainda que, paradoxalmente, não pudesse deixar de revelar.
Próximo capítulo: equívocos na ação
No próximo texto da série, Freud toca no assunto dos equívocos na ação, como quando você se vê trocando alhos por bugalhos, enviando o print da conversa para a própria pessoa, por exemplo. Para ser avisado dos novos capítulos, você pode se inscrever no formulário de newsletter logo abaixo ou clicando aqui.
Referência:
Freud, S (1901). Psicopatologia da Vida Cotidiana, capitulo 7.
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Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes e adultos em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
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