Lembranças encobridoras: histórias que contamos para não lembrar
- Jéssica Domingues
- 6 de ago.
- 4 min de leitura
Atualizado: 15 de ago.
Sobre a série “Psicopatologia da vida cotidiana”
Psicopatologia da vida cotidiana: expressões do inconsciente em nossa rotina
Em 1901, Freud publicou o artigo que dá nome a esta série. Um texto extenso, por vezes mutilado nas traduções — algumas edições chegam a omitir dois terços do conteúdo original, como apontam notas da edição Standard.
O artigo foi escrito logo após a publicação de A Interpretação dos Sonhos (1900) e pode ser lido como seu desdobramento. Se no livro dos sonhos Freud introduz os mecanismos de condensação, deslocamento e figurabilidade, neste artigo ele mostra como essas operações também aparecem fora do contexto onírico — nos esquecimentos, lapsos e pequenos erros da vida desperta.
Fora do setting analítico, essas manifestações costumam ser tratadas como acontecimentos triviais. Mas, na análise, tornam-se matéria de escuta, abrindo caminhos para as mensagens cifradas que o sujeito comunica — mesmo sem saber.
Como o texto é longo e cada capítulo trata de uma formação diferente — desde o esquecimento de palavras estrangeiras até os atos falhos combinados, o determinismo inconsciente e a crítica à crença no acaso — esta série propõe uma leitura semanal comentada, em que cada post será dedicado a um desses aspectos.
Entre o esquecimento e o erro, entre o riso e o estranhamento, o inconsciente se insinua — e convida à reflexão.
Capítulo 4: Lembranças da Infância e Lembranças Encobridoras

Você já se pegou contando uma história de infância que parece curiosamente sem graça, mas insiste em reaparecer na sua memória?
E se essa lembrança estivesse, na verdade, escondendo algo mais?
Neste capítulo da série Psicopatologia da Vida Cotidiana, Freud nos convida a refletir sobre um fenômeno que parece inofensivo, mas revela camadas profundas do funcionamento psíquico: as lembranças encobridoras.
O que são lembranças encobridoras?
Freud define como lembranças encobridoras aquelas lembranças aparentemente irrelevantes, que sobrevivem ao tempo e resistem ao esquecimento, mesmo quando nada têm de memoráveis.
O que essas cenas têm de especial? Elas encobrem, de maneira inconsciente, experiências carregadas de afeto, conflito ou vergonha — experiências que foram recalcadas.
Lembranças banais ou formas de defesa?
Essas lembranças não aparecem por acaso. Elas funcionam como uma substituição simbólica: uma cena aparentemente neutra é escolhida pelo psiquismo para ocupar o lugar de outra, mais perturbadora.
Freud observa que essas memórias encobridoras podem ser:
Retroativas (posteriores ao evento recalcado)
Simultâneas
Ou anteriores ao conteúdo que ocultam
Essa variação mostra que o tempo do inconsciente não é linear: ele pode dobrar, adiar ou antecipar lembranças, conforme as necessidades defensivas do sujeito.
A crítica freudiana à amnésia infantil
Freud também aproveita este capítulo para criticar a naturalização da amnésia infantil — ou seja, o esquecimento quase universal dos primeiros anos de vida.
“Aceitamos com demasiada indiferença o fato da amnésia infantil [...] e deixamos de encará-lo como um estranho enigma.”
Para ele, a infância está longe de ser um tempo inofensivo: há ali complexidade afetiva, conflitos, desejos e traumas. O esquecimento dessas experiências não significa ausência de efeitos. Pelo contrário: elas seguem operando silenciosamente, muitas vezes determinando o que vem depois.
A amnésia infantil oferece, segundo Freud, pistas fundamentais sobre os mecanismos do recalque e da formação de sintomas neuróticos.
Palavra substituta e memória encobridora: o que têm em comum?
Nos capítulos anteriores, vimos como o inconsciente pode se expressar por meio de palavras substitutas — aquelas que escapam quando esquecemos o que íamos dizer.
A lógica é a mesma: Ambas são formas de expressão indiretas, que dizem sem dizer. Tanto a palavra substituta quanto a memória encobridora ocupam o lugar de um conteúdo recalcado, revelando-se formações do inconsciente.
A importância das memórias encobridoras na clínica
Na escuta psicanalítica, nenhuma lembrança é banal.
Se uma memória insiste em reaparecer, mesmo quando parece desinteressante, vale escutá-la com atenção. Talvez ela esteja protegendo algo mais difícil de encarar — um desejo recalcado, um afeto proibido, uma cena traumática.
A memória encobridora não é uma falsificação, mas uma construção defensiva: ela permite lembrar sem reviver; recordar sem entrar em contato pleno com o conteúdo original.
Lembrar para esquecer: a lógica do inconsciente
A função da lembrança, na perspectiva freudiana, não é apenas guardar fatos. Ela também protege, organiza, recalca, substitui.
A lembrança, portanto, nem sempre é o oposto do esquecimento. Às vezes, é o próprio modo como esquecemos.
Próximo capítulo: lapsos na fala
No próximo texto da série, Freud fala então sobre os tão populares lapsos na fala, motivo de riso e constrangimento, mas tão comuns - inclusive como uso em nossas conversas para provar pontos de vista. Para ser avisado dos novos capítulos, você pode se inscrever no formulário de newsletter logo abaixo ou clicando aqui.
Referência:
Freud, S (1901). Psicopatologia da Vida Cotidiana, capitulo 4.
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Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes e adultos em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
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