Erros para a psicanálise: quando o engano revela verdades escondidas
- Jéssica Domingues
- 17 de set.
- 4 min de leitura
Sobre a série “Psicopatologia da vida cotidiana”
Psicopatologia da vida cotidiana: expressões do inconsciente em nossa rotina
Em 1901, Freud publicou o artigo que dá nome a esta série. Um texto extenso, por vezes mutilado nas traduções — algumas edições chegam a omitir dois terços do conteúdo original, como apontam notas da edição Standard.
O artigo foi escrito logo após a publicação de A Interpretação dos Sonhos (1900) e pode ser lido como seu desdobramento. Se no livro dos sonhos Freud introduz os mecanismos de condensação, deslocamento e figurabilidade, neste artigo ele mostra como essas operações também aparecem fora do contexto onírico — nos esquecimentos, lapsos e pequenos erros da vida desperta.
Fora do setting analítico, essas manifestações costumam ser tratadas como acontecimentos triviais. Mas, na análise, tornam-se matéria de escuta, abrindo caminhos para as mensagens cifradas que o sujeito comunica — mesmo sem saber.
Como o texto é longo e cada capítulo trata de uma formação diferente — desde o esquecimento de palavras estrangeiras até os atos falhos combinados, o determinismo inconsciente e a crítica à crença no acaso — esta série propõe uma leitura semanal comentada, em que cada post será dedicado a um desses aspectos.
Entre o esquecimento e o erro, entre o riso e o estranhamento, o inconsciente se insinua — e convida à reflexão.
Capítulo 10: Erros

Erros para a psicanálise
Errar faz parte. Mas será que todo erro é apenas distração? Freud dedicou um capítulo inteiro de sua Psicopatologia da vida cotidiana para mostrar como, muitas vezes, o erro para a psicanálise é mais revelador do que imaginamos.
O que diferencia o erro de outros atos falhos
Ao contrário dos lapsos de fala — que logo nos deixam desconcertados — o erro pode passar despercebido. A consciência até sabia a forma correta, mas “algo” se intrometeu e distorceu o resultado.
Freud conta, por exemplo, que ao revisar A Interpretação dos Sonhos cometeu um engano relacionado à memória do pai já falecido. Um detalhe editorial que trazia à tona uma verdade emocional mais profunda: o peso do respeito filial[1].
Quando o erro revela mais do que esconde
No cotidiano, talvez você já tenha vivido algo parecido:
Um print enviado para a pessoa errada.
Um nome trocado numa conversa importante.
Um erro de digitação que muda o tom da mensagem.
Na superfície, “coisas que acontecem”. Mas por trás, pode haver um recado discreto do inconsciente.
Entre o acaso e a intenção velada
Freud descreve casos em que erros revelam conflitos ocultos. Uma paciente, insatisfeita com seu médico, confundiu cartas de forma a abrir espaço para outro profissional. Era “só um erro”? Talvez, mas um erro cheio de sentido.
Esses exemplos mostram como erros podem ser equivalentes a outros atos falhos — pequenas brechas por onde o inconsciente fala, mesmo que tentemos calá-lo.
O erro do analista
Freud também relatou quando precisou reconhecer um erro diante de seu paciente. Ele percebeu que só poderia manter sua autoridade se fosse sincero quanto às próprias resistências. Ferenczi, anos depois, recomendaria que o analista admitisse seus erros para fortalecer o vínculo com o paciente.
Quando até o pensamento “erra”
No fim do capítulo, Freud amplia a questão: e os grandes erros de julgamento? Nem os cientistas, nem os intelectuais, escapam de ver a realidade filtrada por sua subjetividade. A neutralidade absoluta é um mito — todos somos atravessados pelo inconsciente.
Aqui, vale um lembrete: por isso a análise pessoal é tão fundamental para psicanalistas. Se o inconsciente sempre se infiltra, a melhor forma de lidar com ele não é negá-lo, mas escutá-lo.
[1] Esse tema será mais explorado por Freud em "Um distúrbio de memória na Acrópole" de 1936
Próximo capítulo: Atos Falhos Combinados
No próximo texto da série, Freud toca no assunto atos falhos combinados e de como eles se entrelaçam com o inconsciente. Para ser avisado dos novos capítulos, você pode se inscrever no formulário de newsletter logo abaixo ou clicando aqui.
Referência:
Freud, S (1901). Psicopatologia da Vida Cotidiana, capitulo 10.
Ferenczi, S (1928). A elasticidade da técnica.
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Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes e adultos em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
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