Sensação de insuficiência no fim do ano: então é Natal e o que você fez?
- Jéssica Domingues
- 21 de nov.
- 5 min de leitura
Há momentos em que a vida segue, mas algo dentro permanece em descompasso.
Trata-se de um modo de sofrer que se instala no terreno mais íntimo, onde expectativas internas, ideais rígidos e histórias não ditas se entrelaçam — uma sensação de insuficiência que se intensifica quando o ciclo se aproxima do fim.
No fim do ano, esse sentimento costuma ganhar mais nitidez. É quando o encerramento simbólico de um período reorganiza, de modo silencioso, a atenção para o que não aconteceu como esperado, para metas que ficaram suspensas ou para a sensação insistente de que era possível ter feito mais.

Entendendo a sensação de insuficiência e suas origens psíquicas
A sensação de insuficiência pode ser compreendida pela distância entre o Ego e o Ideal de Ego. O Ego, aqui, entende-se como a instância que busca manter alguma continuidade psíquica na experiência de si. O Ideal de Ego, por sua vez, representa a imagem interna daquilo que deveria ser alcançado — por exemplo: mais eficiente, mais perfeito, mais capaz.
O SuperEgo mede essa distância. Em muitos casos, o faz de maneira rígida, impondo exigências superegoicas. Não se trata, portanto, de desempenho ou força de vontade, mas da forma como essa medida interna se constituiu: marcada por falhas de reconhecimento, expectativas idealizadas e experiências que deixaram pouco espaço para o “bom o suficiente”.
A distância entre essas instâncias torna-se um terreno fértil para a insuficiência, sempre regulada pelas exigências superegoicas.
Quando o conflito é interno, mas as fontes são internas e externas
Embora a experiência se viva por dentro, ela é também alimentada por forças externas. Vivemos em um cenário que exige produtividade contínua, excelência e presença permanente — isso opera em diversos ambientes sendo um deles o profissional, em que metas, avaliações e entregas sucessivas aproximam ainda mais o Ideal de Ego de um modelo de desempenho ininterrupto.
Nas redes sociais, por exemplo — Leia aqui o texto que falo sobre uso abusivo de telas digitais — pequenos recortes aparecem como totalidades. Para quem está fragilizado internamente, com referências próprias pouco consolidadas, esses fragmentos passam a funcionar como mandatos de perfeição, reforçando uma lógica de comparação constante e comumente desfavorável.
Uma cena possível
Não é raro que isso apareça em situações simples: depois de um dia inteiro de trabalho, o sentimento não é de “bastou por hoje”, mas de que algo ficou faltando — mesmo quando, concretamente, pouco mais poderia ser acrescentado. Essa cobrança silenciosa faz com que qualquer descanso pareça dívida, e qualquer pausa pareça falha.
Quando o corpo sente o que ainda não pode ser pensado
A sensação de insuficiência nem sempre chega por palavras. Muitas vezes, ela se expressa primeiro pelo corpo: tensão persistente, cansaço que não melhora, sensação de automatismo.
Esse tipo de manifestação se aproxima do que você desenvolveu no texto da dor sem nome: afetos que ainda não puderam ser pensados e que, por isso, se expressam corporalmente - Leia aqui o texto que falo sobre dor sem nome.
Para muitas pessoas, isso é vivido como falha pessoal — “eu deveria aguentar mais”, “os outros dão conta”, “estou atrás” — quando, na verdade, aponta para uma experiência psíquica ainda sem forma.
O ‘nada é suficiente’ como forma de organizar a vida
Com o tempo, essa medição ostensiva da distância entre Ego e Ideal de Ego pode se cristalizar como modo de organização interna. Não se trata de características pessoais de inadequação, mas da distância entre o que é possível reconhecer em si e um ideal pautado por uma régua impossível. Quando não questionada, essa medida pode estruturar a vida de maneira exaustiva e, em alguns casos, destrutiva.
No fim do ano, esse movimento se intensifica: balanços internos — mesmo não intencionais — reacendem exigências superegoicas.
O que a psicanálise pode abrir quando escuta essa medida
Escutar a sensação de insuficiência na clínica não é interpretar “falta de confiança”.É aproximar-se de uma economia psíquica organizada por exigências que funcionam como mandatos internos.
Pela via da transferência — Leia aqui o texto que falo sobre transferência e marketing — a régua interna pode ser experimentada na relação analítica. Não se trata de substituir uma exigência por outra mais “leve”, mas de compreender a história dessa medida, sua função e sua insistência.
Nem sempre é possível diminuir as exigências superegoicas de imediato. Mas, ao longo do trabalho, pode deixar de ser inevitável obedecê-las sem perguntar de onde vêm.
FAQ — Perguntas frequentes sobre insuficiência
1. Sentir que nada é suficiente significa ter baixa autoestima?
Não necessariamente. A sensação de insuficiência costuma estar mais ligada à distância entre Ego e Ideal de Ego e às exigências superegoicas.
2. Isso tem relação com ansiedade ou esgotamento?
Em alguns casos, sim. Exigências internas contínuas podem favorecer quadros de tensão e exaustão.
3. Comparação com outras pessoas faz parte desse processo?
Muitas vezes, sim. A comparação se torna mais rígida quando referências internas estão frágeis. Em especial nas redes sociais, recortes de vida podem funcionar como mandatos de perfeição comumente desfavoráveis.
4. Psicanálise pode ajudar?
Sim — não por oferecer técnicas para “melhorar desempenho”, mas por investigar a história dessa régua interna e o que ela tenta garantir.
5. Esse sentimento aumenta no fim do ano?
Com frequência, sim. Fechamentos de ciclo intensificam balanços internos e exigências superegoicas.
Referência:
Freud, S (1923). O Ego e o Id.
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Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes e adultos em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
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