Atos Falhos Combinados: quando o inconsciente trama em várias camadas
- Jéssica Domingues
- 24 de set.
- 4 min de leitura
Sobre a série “Psicopatologia da vida cotidiana”
Psicopatologia da vida cotidiana: expressões do inconsciente em nossa rotina
Em 1901, Freud publicou o artigo que dá nome a esta série. Um texto extenso, por vezes mutilado nas traduções — algumas edições chegam a omitir dois terços do conteúdo original, como apontam notas da edição Standard.
O artigo foi escrito logo após a publicação de A Interpretação dos Sonhos (1900) e pode ser lido como seu desdobramento. Se no livro dos sonhos Freud introduz os mecanismos de condensação, deslocamento e figurabilidade, neste artigo ele mostra como essas operações também aparecem fora do contexto onírico — nos esquecimentos, lapsos e pequenos erros da vida desperta.
Fora do setting analítico, essas manifestações costumam ser tratadas como acontecimentos triviais. Mas, na análise, tornam-se matéria de escuta, abrindo caminhos para as mensagens cifradas que o sujeito comunica — mesmo sem saber.
Como o texto é longo e cada capítulo trata de uma formação diferente — desde o esquecimento de palavras estrangeiras até os atos falhos combinados, o determinismo inconsciente e a crítica à crença no acaso — esta série propõe uma leitura semanal comentada, em que cada post será dedicado a um desses aspectos.
Entre o esquecimento e o erro, entre o riso e o estranhamento, o inconsciente se insinua — e convida à reflexão.
Capítulo 11: Atos Falhos Combinados

Um lapso já pode nos desconcertar. Mas o que dizer quando eles se somam? Freud chama de atos falhos combinados aqueles episódios em que diferentes falhas se entrelaçam: um esquecimento que vem acompanhado de um erro de fala, uma confusão reforçada por um gesto “casual”.
Não é apenas um tropeço. É como se o inconsciente insistisse, multiplicando saídas, dobrando sinais, erguendo um mosaico de pequenas rupturas.
O tecido das falhas
Nos atos falhos combinados, o inconsciente não se contenta com um único deslize. Ele arma sobreposições:
Uma distração que vira engano.
Um esquecimento que se une a uma omissão.
Uma palavra distorcida acompanhada de uma ação que a reforça.
Cada fissura se cola à outra, criando um quadro mais nítido daquilo que estava recalcado.
Exemplos que se multiplicam
Freud descreve episódios em que um nome trocado se soma a um detalhe omitido, formando um rastro de falhas que, vistas em conjunto, revelam mais do que cada uma isoladamente. Pequenos enganos editoriais em seus próprios textos, por exemplo, revelaram algo mais íntimo: a presença da memória de seu pai falecido. Aqui, vemos como os erros combinados se tornam janelas para conteúdos afetivos recalcados.
Podemos pensar ainda em episódios contemporâneos:
um recado que sempre “se perde” no grupo errado;
um nome que se escreve mal em diferentes contextos;
um detalhe que escapa repetidas vezes numa apresentação.
Ao somar-se, esses deslizes parecem querer dizer: há algo aqui que resiste ao silêncio.
A poética do excesso
O ato falho combinado é como uma música em várias vozes — o inconsciente repete, insiste, ecoa. Cada falha adiciona uma camada, como se fosse impossível não se deixar ouvir. O acaso, quando se multiplica, já não é só acaso: é trama, é necessidade de expressão.
Quando o erro se torna insistência
Essas combinações revelam que o inconsciente não se satisfaz com um único gesto. Ele redobra, atravessa, entrelaça. Escutá-los é acolher a complexidade do desejo e a força do que insiste em emergir.
Próximo capítulo: Determinismo, Crenças no acaso e Superstição
No próximo texto da série, Freud toca no nossas crenças se associam ao inconsciente e nossa psicopatologia cotidiana. Para ser avisado dos novos capítulos, você pode se inscrever no formulário de newsletter logo abaixo ou clicando aqui.
Referência:
Freud, S (1901). Psicopatologia da Vida Cotidiana, capitulo 11.
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Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes e adultos em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
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