Por que esquecemos os sonhos? Freud e Sidarta Ribeiro: o contemporâneo e o ancestral
- Jéssica Domingues
- 26 de nov.
- 6 min de leitura
Sobre a série “A Interpretação dos Sonhos”
A Interpretação dos Sonhos: o inconsciente em imagens e deslocamentos
Publicada em 1900, A Interpretação dos Sonhos é considerada a pedra fundamental da psicanálise. Nela, Freud descreve como o inconsciente se expressa nas imagens oníricas por meio de condensações, deslocamentos e processos de figurabilidade — mecanismos que traduzem o pensamento inconsciente em cenas, símbolos e narrativas.
Com esta série, damos continuidade ao percurso iniciado em “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, texto publicado em 1901 e que pode ser lido como um desdobramento de A Interpretação dos Sonhos. Se ali Freud mostrou como o inconsciente se revela nos lapsos, esquecimentos e atos falhos, aqui ele nos conduz à origem do trabalho onírico, onde o desejo se disfarça em imagem e o sentido se oculta no sonho.
Ao propor que os sonhos são a via régia para o inconsciente, Freud nos convida a atravessar essa fronteira entre o visível e o invisível, entre o que se sonha e o que se cala. Nesta série, acompanharemos essa travessia, explorando os conceitos fundamentais da interpretação dos sonhos e o modo como, ainda hoje, os sonhos seguem sendo uma via de acesso ao inconsciente e à elaboração psíquica.
Capítulo 1 - D - Porque esquecemos o sonho após o despertar?
Por que esquecemos os sonhos? A pergunta atravessa épocas: dos autores do século XIX que intrigavam Freud, aos neurocientistas atuais como Sidarta Ribeiro, que alerta para o risco contemporâneo de perdermos o vínculo com a vida onírica.
Neste item da Interpretação dos sonhos, Freud não discute o sentido dos sonhos — isso virá mais adiante. Aqui, ele faz algo mais básico e igualmente misterioso: tenta compreender por que a lembrança do sonho se desfaz tão rapidamente.
É um texto que nos aproxima da fronteira entre o psíquico, o corporal e o cotidiano. E talvez seja justamente por isso que ressoa tanto hoje.

Por que esquecemos os sonhos?
Freud parte de um fenômeno que muitos de nós reconhecemos:
Sonhamos,
acordamos com fragmentos,
e, pouco depois, tudo se dissolve.
O esquecimento dos sonhos não é um acidente; ele segue múltiplas vias de apagamento, algumas compartilhadas com a vigília, outras específicas do sonhar.
1. Intensidade não garante lembrança
Alguns sonhos são esquecidos porque eram fracos; outros, porque eram intensos demais para se fixar. A intensidade, por si só, não decide nada.
2. O que não se repete, não se fixa
Grande parte das imagens oníricas ocorre uma única vez, o que dificulta sua inscrição na memória. A memória humana favorece o que retorna — e muitos sonhos são irrepetíveis.
3. Falta de encadeamento lógico
A memória depende de organização: é mais fácil guardar o que tem ordem, sequência, sentido. Mas como reter algo que, por natureza, se apresenta como:
fragmentado,
deslocado,
sem lógica aparente?
Freud dirá mais tarde que o sonho tem sua própria lógica — mas do ponto de vista da consciência, ele se oferece como um conjunto solto.
4. O mundo externo se impõe
Ao acordar, a percepção toma o primeiro plano: luz, corpo, tarefas, tempo, telas. O sonho, que era vívido há segundos, cede ao impacto sensorial da manhã — e se rompe.
5. Falta de interesse
As que não se interessam pelos seus sonhos vinculam-se menos a eles. E aquilo a que não damos lugar tende a desaparecer.
O contemporâneo e o ancestral: quando Sidarta Ribeiro encontra Freud
O neurocientista Sidarta Ribeiro descreve algo que dialoga profundamente com o diagnóstico freudiano: o sonho se vincula muito ao seu lugar social e que hoje se vê reduzido.
O sonho está em risco de extinção cultural — não porque deixou de existir, mas porque deixou de ser contado.
Para Sidarta, perdemos um ritual ancestral: o de compartilhar sonhos — nas famílias, nas aldeias, nos espaços comuns.
Nosso modelo cultural contemporâneo contribui a essa obturação da experiência do sonho por situações como:
Horas insuficientes de sono,
ritmos de despertar abruptos,
imersão imediata em telas.
Esses elementos criam um ambiente hostil à lembrança do sonho, que exige alguns segundos de baixa estimulação para emergir.
Freud, por sua vez, descreve algo semelhante, em outra linguagem: ao despertar, o novo dia invade, e a lembrança se desfaz.
Dois autores distantes, e uma convergência clara: quando o mundo externo entra rápido demais, o sonho não tem tempo de se elevar à memória.
O que permanece? Freud e a memória durável dos sonhos
Se tantos sonhos se perdem, por que alguns atravessam décadas?
Freud relata pacientes que lembravam sonhos de 20, 30, 40 anos antes — e ele próprio recordava um sonho de mais de três décadas, intacto. Por quê?
Não porque fossem mais verdadeiros ou melhor estruturados. Mas porque tocaram algo decisivo da vida psíquica: um afeto, um problema, um ponto sensível da existência — algo que permaneceu vivo.
São sonhos que retornam porque, de algum modo, continuaram trabalhando na vida da pessoa.
O esquecimento dos sonhos hoje: o que está em jogo?
Quando juntamos Freud e Sidarta, surge uma questão maior:
O que acontece quando o sonho perde espaço no cotidiano?
Sidarta destaca possíveis impactos cognitivos; Freud nos lembra que o sonho é um modo de trabalho psíquico.
Podemos perguntar:
O que perdemos quando não recordamos nem contamos nossos sonhos?
Que consequências surgem quando o sonhar deixa de ter um lugar?
O que acontece com o trabalho psíquico quando suas vias de expressão se fecham?
Ao longo da série, veremos como o sonho — ao condensar, deslocar, figurar — sustenta a capacidade de elaborar a vida, produzir sentido e transformar o que insiste.
Se o sonho perde espaço cultural e individual, o que se perde junto?
FAQ — Por que esquecemos os sonhos?
1. Por que esquecemos os sonhos ao despertar?
Porque múltiplos fatores atuam juntos: pouca repetição das imagens, falta de encadeamento, interferência do mundo externo e desinteresse cotidiano. O sonho é, por natureza, vulnerável ao apagamento.
2. O que Freud diz sobre a fragilidade da memória onírica?
Ele afirma que os sonhos são difíceis de lembrar porque não se articulam como narrativas estáveis. Ao entrar em vigília, a lembrança se rompe com facilidade.
3. O que Sidarta Ribeiro acrescenta a essa discussão?
Que vivemos um empobrecimento cultural do sonho: dormimos mal, acordamos rápido e não compartilhamos mais nossos sonhos — o que dificulta ainda mais sua lembrança.
4. Por que alguns sonhos permanecem por décadas?
Porque tocam pontos significativos da vida psíquica. Eles permanecem não pelo conteúdo literal, mas pelo impacto emocional e simbólico.
Referência:
Freud, S (1900). A interpretação dos sonhos, 1-d.
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Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes, adultos e casais em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
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