As características psicológicas dos sonhos em Freud
- Jéssica Domingues
- há 5 dias
- 5 min de leitura
Sobre a série “A Interpretação dos Sonhos”
A Interpretação dos Sonhos: o inconsciente em imagens e deslocamentos
Publicada em 1900, A Interpretação dos Sonhos é considerada a pedra fundamental da psicanálise. Nela, Freud descreve como o inconsciente se expressa nas imagens oníricas por meio de condensações, deslocamentos e processos de figurabilidade — mecanismos que traduzem o pensamento inconsciente em cenas, símbolos e narrativas.
Com esta série, damos continuidade ao percurso iniciado em “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, texto publicado em 1901 e que pode ser lido como um desdobramento de A Interpretação dos Sonhos. Se ali Freud mostrou como o inconsciente se revela nos lapsos, esquecimentos e atos falhos, aqui ele nos conduz à origem do trabalho onírico, onde o desejo se disfarça em imagem e o sentido se oculta no sonho.
Ao propor que os sonhos são a via régia para o inconsciente, Freud nos convida a atravessar essa fronteira entre o visível e o invisível, entre o que se sonha e o que se cala. Nesta série, acompanharemos essa travessia, explorando os conceitos fundamentais da interpretação dos sonhos e o modo como, ainda hoje, os sonhos seguem sendo uma via de acesso ao inconsciente e à elaboração psíquica.
Capítulo 1 - E - As particularidades psicológicas do sonho
Por que o sonho nos parece tão estranho, tão pouco “nosso”, se ele é produzido por nossa própria vida psíquica?
Freud parte dessa pergunta para introduzir um problema que não é de interpretação simbólica — ainda não é sobre o sentido dos sonhos — mas sobre algo mais elementar e igualmente inquietante: que tipo de funcionamento psíquico se instala quando sonhamos?
As características psicológicas dos sonhos, escreve Freud, não decorrem do material utilizado — semelhante ao da vida de vigília —, mas de modificações nos próprios processos da mente durante o sono.
É esse deslocamento no modo de funcionamento que produz a sensação de estranheza.

As características psicológicas dos sonhos segundo Freud
Freud observa que, ao sonhar, não pensamos como pensamos acordados. Não se trata de ausência de atividade mental, mas de outra forma de organização psíquica.
Entre as transformações mais importantes, ele descreve:
suspensão das funções críticas
redução da orientação voluntária
afrouxamento das conexões lógicas
predomínio de imagens sobre conceitos
intensificação da vivência sensorial interna
Essa modificação não representa uma falha da mente, mas a instalação de uma outra lógica de funcionamento — uma lógica que não obedece aos critérios cartesianos da vigília.
O sonho não pensa — mas o sonhador funciona de outra maneira
Freud não diz que “o sonho pensa”, mas que o sonhador passa a funcionar segundo outra lógica psíquica.
O que ocorre no sonho não é apresentado como reflexão ou hipótese: impõe-se como experiência.
O sonhar dramatiza. Em vez de comentar a realidade, o sonho a transforma em cena.
Não avaliamos,não refletimos,não comparamos.
A experiência psíquica se organiza sem os operadores habituais da consciência desperta.
Essa lógica não é caótica: ela é diferente.
Contradições são concebidas com naturalidade.
O impossível não provoca estranhamento.
Cenas incongruentes não exigem explicação.
O sonho aceita o paradoxo sem pedir coerência.
Pensar em imagens: a comunicação fundamental do sonho
Freud retoma uma observação já feita por outros autores: a vida onírica pensa em imagens.
Quando a atividade voluntária enfraquece, emergem representações involuntárias — sensoriais, vívidas, carregadas de afeto.
As ideias, em vez de se articularem ordenadamente, se figuram.
A consciência não comenta: a imagem acontece.
É por isso que o sonho é vivido como realidade — e não como pensamento.
Não se trata de refletir sobre algo, mas de atravessar uma cena.
O que se altera durante o sono
Freud descreve modificações profundas no funcionamento psíquico durante o sono:
suspensão das funções críticas
redução da orientação voluntária
afrouxamento das associações guiadas pela lógica desperta
Essas transformações não autorizam uma leitura simplificadora da vida onírica.
O sonho não é “empobrecido”. É constituído por outra dinâmica de funcionamento.
Ele se organiza sem censuras intelectuais, sem controle reflexivo, sem exigência de coerência narrativa.
E, justamente por isso, revela um modo de funcionamento que permanece ativo — ainda que sob outra forma.
Sonho e clínica: o valor técnico da vida onírica
Há aqui uma consequência decisiva para a clínica. A base da associação livre encontra eco na experiência do sonhar. Ambos operam com:
• suspensão parcial da censura
• associações não linearmente guiadas
• deslocamentos inesperados
• emergências imagéticas
O enquadre analítico não busca “reproduzir o sonho”,mas criar condições para que algo do funcionamento onírico possa emergir durante a sessão.
Não se trata de delirar, mas de permitir que:
a palavra corra menos vigiada,as associações se soltem,as imagens apareçam,o pensamento não seja imediatamente corrigido.
Nesse sentido, o analisando sonha em sessão. Não para dormir, mas para escutar o próprio inconsciente.
A falsa oposição: sonho como degradação?
Freud confronta uma tradição que descrevia o sonho como:
disfuncional,falho,sem valor mental. Autores como Maury, Binz e outros psiquiatras do século XIX falavam em “anarquia psíquica”. Freud não recusa a estranheza do sonho.Recusa a conclusão apressada.
O sonho não é menos psíquico. É psíquico de outro modo.
O enigma permanece
Mesmo após tantas descrições, Freud reconhece:
O sonho continua estranho. Mesmo quando compreendido.
Podemos traduzir imagens em palavras,reconstruir associações,sistematizar processos.
E ainda assim,algo no sonho escapa.
E talvez seja exatamente isso que o mantém vivo.
FAQ — As características psicológicas dos sonhos
O que Freud chama de características psicológicas dos sonhos?
São as modificações no funcionamento da vida psíquica durante o sono: suspensão da crítica, afrouxamento da lógica, pensamento por imagens e alteração da vivência do tempo e da realidade.
O sonho é um empobrecimento da mente?
Não. Freud critica essa leitura. O sonho não empobrece o funcionamento psíquico; ele o reorganiza sob outras regras.
O sonho pensa?
Não. Quem pensa é o sonhador. O que muda é o modo como a atividade psíquica se organiza durante o sonho.
Qual a importância clínica do sonhar?
A lógica do sonho ilumina o método psicanalítico: associação livre, afrouxamento da censura e escuta do inconsciente.
O sonho é caótico?
Não. Ele obedece a outra lógica — não cartesiana, mas a do inconsciente.
Referência:
Freud, S (1900). A interpretação dos sonhos, 1-e.
Continue lendo:
Se você gostou deste texto, talvez se interesse por:
Por que esquecemos os sonhos? Freud e Sidarta Ribeiro: o contemporâneo e o ancestral
Fontes psíquicas dos sonhos: o que a vida psíquica oferece ao sonhar
Estímulos corporais internos nos sonhos: quando o corpo fala segundo Freud
Luzes que vêm de dentro: as excitações sensoriais internas no sonho segundo Freud
De fora para dentro: os estímulos sensoriais externos no sonho
A Interpretação dos Sonhos: os prefácios e o desabrochar da psicanálise freudiana
Análise pessoal psicanalítica: o que é e para quem é esse percurso
Sonhar na Psicanálise: A Interpretação dos Sonhos e o Inconsciente. O que os sonhos têm a nos dizer?
Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes, adultos e casais em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
Se esse texto te deixou pensando, e quiser conversar sobre um possível início, você pode agendar uma sessão ou me escrever.













Comentários