Sentimentos morais nos sonhos: o que Freud diz sobre ética e culpa no sonhar
- Jéssica Domingues
- há 6 dias
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Sobre a série “A Interpretação dos Sonhos”
A Interpretação dos Sonhos: o inconsciente em imagens e deslocamentos
Publicada em 1900, A Interpretação dos Sonhos é considerada a pedra fundamental da psicanálise. Nela, Freud descreve como o inconsciente se expressa nas imagens oníricas por meio de condensações, deslocamentos e processos de figurabilidade — mecanismos que traduzem o pensamento inconsciente em cenas, símbolos e narrativas.
Com esta série, damos continuidade ao percurso iniciado em “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, texto publicado em 1901 e que pode ser lido como um desdobramento de A Interpretação dos Sonhos. Se ali Freud mostrou como o inconsciente se revela nos lapsos, esquecimentos e atos falhos, aqui ele nos conduz à origem do trabalho onírico, onde o desejo se disfarça em imagem e o sentido se oculta no sonho.
Ao propor que os sonhos são a via régia para o inconsciente, Freud nos convida a atravessar essa fronteira entre o visível e o invisível, entre o que se sonha e o que se cala. Nesta série, acompanharemos essa travessia, explorando os conceitos fundamentais da interpretação dos sonhos e o modo como, ainda hoje, os sonhos seguem sendo uma via de acesso ao inconsciente e à elaboração psíquica.
Capítulo 1 - F - Os sentimentos éticos no sonho
Freud dedica um dos trechos mais inquietantes de A Interpretação dos Sonhos a uma pergunta delicada e inevitável:
a moral continua operando enquanto sonhamos?
Ou, dito de outro modo:os sentimentos morais no sonho desaparecem — ou apenas mudam de forma?
Os autores que Freud convoca sustentam posições opostas. Alguns afirmam que a consciência moral se cala por completo; outros defendem que o caráter ético permanece intacto nos sonhos.
Quase todo mundo já sonhou com algo que, na vida desperta, seria impensável.
Mas Freud não aceita soluções simples.
A tensão central: moral suspensa ou preservada?
Jessen, Radestock e Volkelt acreditam que, no sonho, o julgamento moral se dissolve. Seríamos capazes de transgredir sem qualquer culpa.
Já Schopenhauer, Fischer e Haffner sustentam que o sonhador age, mesmo dormindo, em continuidade com seu caráter.
Freud mostra que ambos os extremos falham quando tomados isoladamente. Nenhuma dessas saídas se sustenta na clínica.

O cuidado essencial: não confundir sonho com ação
Aqui, Freud é particularmente rigoroso. Embora impulsos e desejos apareçam, isso não equivale a agir.
Por isso, Freud rejeita qualquer tentativa de julgar alguém pelas cenas que sonhou.
Podemos apenas dizer:
pode haver diferença entre o que aparece no sonho e o que se escolhe na vigília.
Afinal a lógica da vida de vigília responde à lógica consciente, assim como a da vida onírica, responde à lógica inconsciente.
Representações involuntárias: o ponto decisivo
Freud introduz então uma ideia fundamental: há pensamentos, afetos e impulsos que atravessam a vida psíquica sem plena consciência.
Durante a vigília, muitos desses conteúdos são reprimidos, contidos ou ignorados. No sono, retornam sob forma de representações involuntárias — não como escolhas, mas como movimentos psíquicos figurados. E justamente por ocuparem esse lugar, se tornam tão relevantes à escuta do inconsciente.
É por isso que o sonho pode soar estranho: ele não inventa impulsos; ele os dramatiza.
A frase de Hildebrandt ecoa bem aqui: o sonho não inventa — ele encena.
Freud não diz que os sonhos revelam a essência moral de alguém. Ele mostra que o sonho trabalha com material psíquico que não se esgota na consciência.
O afeto não é imaginário
Mesmo que a cena seja fictícia, o afeto é vivido de modo autêntico. Medo, prazer, vergonha e culpa aparecem no sonho com intensidade própria — e isso não deve ser confundido com literalidade.
Freud nos alertará que as figuras não são cópias,os cenários não são transcrições,os objetos não são aquilo que parecem. A emoção é verdadeira, mas a forma é indireta.
O sonho julga?
O sonho mostra. Mostra zonas que a vigília costuma ignorar ou domesticar.
Não condena, não acusa, não revela necessariamente um “verdadeiro eu”.
O que encontramos no sonho não é essência: é trabalho psíquico.
O que os sonhos fazem com a moral, então?
Eles não anulam a ética. Mas também não a espelham como durante o dia.
O sonho reduz a censura, mas não apaga os afetos.
A moral não desaparece — apenas perde a soberania.
E é por isso que tantos sonhos perturbam: não porque digam quem somos diretamente, mas porque mostram o quanto somos atravessados.
FAQ — Sentimentos morais nos sonhos
1 - Sonhar algo imoral significa ter um caráter imoral?
O sonho não é ação nem escolha consciente. Ele apresenta material psíquico figurado, que não equivale a decisão moral. Pode haver diferença entre o que aparece no sonho e o que se escolhe na vigília.
2 - O sonho revela quem somos “de verdade”?
Não de modo direto. O sonho não é espelho da essência, mas uma produção psíquica indireta, na qual afetos e imagens aparecem deslocados de sua forma ordinária.
3 - Os afetos no sonho são reais?
Sim. Medo, prazer, culpa e angústia são vividos com intensidade autêntica. Mas cenas e personagens não devem ser lidos literalmente.
4 - O sonho tem consequências?
Não morais, não jurídicas — mas psíquicas, sim.O sonho afeta, sinaliza, desloca, insiste.
Referência:
Freud, S (1900). A interpretação dos sonhos, 1-f.
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Sobre a Autora:
Jéssica Domingues é psicanalista com percurso formativo pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Atende adolescentes, adultos e casais em consultório particular, com atendimento presencial em Higienópolis (São Paulo) e Cerâmica (São Caetano do Sul), além de atendimentos online. Participa de grupos de estudos voltados à psicanálise contemporânea. Interessa-se por temáticas como depressão, luto, repetição e as formas atuais de mal-estar. É autora do artigo “O conceito de limite em André Green como proposta anti-procustiana ao enquadre clássico”, apresentado na Jornada de Membros do Departamento Formação em Psicanálise do Instituto Sedes de 2022.
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